Fizera-o novamente. E agora, olhava incrédulo para a faca manchada de um vermelho grudado, daqueles que parecem nunca sair.
Inquieto, buscava um plano de fuga, mas nenhum lhe parecia possível - em não mais que dois minutos sua mulher estaria de volta.
Saiu em disparada rumo ao banheiro.
O crime só tinha duas provas: uma na sua mão; a outra, enrolada em plástico-filme dentro do enorme freezer horizontal. Congelada, escondia-se da vista, refreando-lhe o desejo de nunca parar. Roubada a maciez da perfuração, sentia diminuído o prazer do golpe.
Na pequena pia de aspecto sujo, lavou a faca com a vitalidade de um jovem, excitado pelo ato cometido. Já era velho há tanto tempo, que não se recordava de ter sido jovem um dia. Questionava-se se seria esta a motivação do crime. Sentir-se jovem.
Pensou na esposa com tristeza. Em todas as vezes prometeu-a ser a última. Mentiu sempre. Sua vida era uma grande mentira.
Foi arrancado dos seus pensamentos pelo ranger do velho portão da entrada. Ouviu passos e correu de volta para a cozinha. Acreditou chegar a tempo de guardar a faca já limpa. Mas, mal se virou, deu de cara com a mulher, que lhe indagou sem exitação:
- De novo, Rodolfo? – Sua voz soava fria e incrédula.
Rodolfo gaguejou. Tentou falar e a voz não saiu. Desatou a chorar. Pensou ser uma cena ridícula, um velho como ele chorando feito criança; ainda mais na frente de uma mulher. Homem não chora na frente de mulher. Homem não admite nada para mulher.
Escolheu negar.
- Não, meu amor. Não fiz nada.
- Então, por que o choro? – Eliana torceu a boca com o seu trejeito costumeiro.
- Ah! Bateu saudades do Aroldão. Você sabe que ele era...
- Chega, Rodolfo. Basta de mentiras. Você nunca gostou do Aroldão. Já faz um mês que ele morreu e só agora você se lembrou de chorar? No enterro ficou lá, sorrindo e contando piadas de bicha. Você nunca gostou de bicha. Por que choraria pelo Aroldão?
Rodolfo sentiu-se perdido. Não conseguia pensar em nenhuma desculpa plausível para o choro. Sempre que a mulher vira-o chorar, a razão era a mesma. A mesma de agora.
Da última vez ela o surpreendeu ainda com a faca na mão. Ele chorou em seus braços e se desculpou. Exalava arrependimento de tal maneira, que ela sentiu-se impelida a continuar acobertando o seu segredo. Juntos limparam o chão e a faca salpicados de vermelho, antes que a filha chegasse para lhes deixar a neta. Se soubesse, a sua pequena jamais o perdoaria, como a esposa sempre o fazia.
Agora, Rodolfo percebia que Eliana não voltaria a compactuar com tal atrocidade. Pensou em admitir a culpa perante a mulher e lhe pedir ajuda. Sentia-se doente e cansado.
Seus crimes nunca foram fruto do querer. Cometia-os por se sentir tomado de uma intensa necessidade, maior do que ele próprio.
A mulher dirigiu-se ao freezer com determinação.
- Foi aqui que você escondeu?
Rodolfo congelou. Teria vacilado e olhado em direção ao freezer? Como era possível que ela soubesse?
Não, não poderia admitir.
- Pra que essa faca levantada, Rodolfo? Pretende usa-la novamente?! E então, onde escondeu desta vez?
Finalmente, se deu por vencido, sentando-se no tamborete com o verniz já descascado. Era melhor assim. De nada valia continuar a lutar contra a própria natureza. Pediria para ser internado se fosse preciso. Não suportaria mais passar por semelhante constrangimento. Era sempre a mesma coisa; a mesma culpa o invadia.
- Está aí dentro – resignou-se Rodolfo.
A mulher abriu o freezer com todo cuidado, balançando a cabeça em sinal de reprovação. Ao olhar para dentro, ficou lívida.
- Merda, Rodolfo! Você não tem juízo nenhum?! Pelo amor de Deus! Você já não é jovem, homem! Você está velho, diabético, já perdeu uma perna por isso e não se emenda. Meia lata de goiabada?!
Meia lata, Rodolfo?!
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Um agradecimento especial à preta (
aquela, da 81)
, minha editora predileta.
Mateus Medina
19/10/2011