quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Des-desesperar

Espero, como todos que esperam
Esperando, sem querer esperar
Desespero, como todos que esperam
Na esperança de "des-desesperar"

Julgo ver o tempo que passa,
Enganado pelo meu destempero
Pois o tempo - à semelhança da traça
Depois de traçado, é só desespero

O que traça o tempo que não passa?
Onde mora o fim do pesadelo?
Se soubesse, batia-lhe à porta
Matava-lhe e pronto; fim do desespero

Mateus Medina
12/10/2016


segunda-feira, 24 de agosto de 2015

(Des)Ilusões


Imagem: https://goo.gl/WgytS5

Lembro do sorriso daquele rapaz como se fosse hoje. Andava ali pelos seus vinte e poucos anos e quando me viu, sentado naquele banco, se aproximou com certa timidez, mas uma alegria que era impossível não notar.

- Olá, desculpe... não quero incomodar, mas posso me sentar aqui ao lado do senhor?

Acenei que sim e sorri de volta. O sorriso do rapaz era contagiante.

- Eu o conheço - disse ele, ainda sem se despir do sorriso.

- Desculpe, mas não me lembro de você. De onde o jovem feliz me conhece?

- Eu o conheço dos seus livros. Amo todos os seus livros. Tenho todos! O senhor sabe tudo sobre o amor.

- Sinto desapontá-lo, mas ao afirmar isso, comete dois erros de uma só vez. Julgo que este sorriso de orelha a orelha seja de paixão, certo?

O jovem ignorou a primeira parte do que eu disse, com a típica capacidade de seleção dos jovens e respondeu apenas a pergunta.

- De certo modo, sim. Mas as coisas não estão indo bem - e mesmo assim, o sorriso se mantinha grudado ao rosto do rapaz, insistente. Fiquei confuso.

- Pelo sorriso, jamais diria - respondi num tom intrigado.

- O sorriso é por encontrá-lo. O senhor sabe tudo sobre o amor e tenho certeza que se puder me dedicar dez minutos, posso explicar o que se passa e não há ninguém melhor nesse mundo para me dizer o que fazer.

- Meu jovem, lembra-se dos dois erros que te falei há instantes? Então, o primeiro é que você não me conhece. Conhece os meus livros, a minha arte. E a minha arte não é o que sou, embora carregue muito de mim. O segundo é supor que eu saiba alguma coisa sobre o amor, quanto mais tudo. Sobre o amor não sei nada. E se o jovem encontrar pelo caminho alguém que afirme saber, pode tomá-lo, sem qualquer hesitação, por mentiroso ou inocente. 

Mateus Medina
24/08/2015

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Juntos pela família!






Manuel acordou num sobressalto. Olhou pela fresta da janela e concluiu que o sol já ia alto. Era domingo, dia de ir à igreja com a família. Estava atrasado. E logo hoje, que era dia da “Caminhada da Família com Cristo”.

Enquanto corria para a casa de banho, ligou a TV. O Jornal da Manhã dava conta da discussão do projeto de adoção por casais homossexuais. “Que aberração!”, exclamou em voz alta, sem sequer se dar conta. O simples fato de se pôr o tema em discussão era uma afronta a Deus, à família tradicional e à sociedade. Que tipo de criação essas crianças teriam? Por essas e outras é que o mundo andava como andava.

E têm a lata de chamar a isso “família”, num telejornal da manhã. Família? Família era a do Manuel. Um marido, uma mulher e filhos - naturais, sem essa invenção de inseminação artificial, porque Deus não aprova essas coisas.
          
  Irado com aquela afronta matinal, desistiu do banho. Vestiu as calças, e se limitou a trocar a camisola. Enfiou a mão numa mochila e tirou de lá uma especialmente feita para a “Caminhada da Família com Cristo”. Na parte de trás havia uma foto do Manuel, a mulher e os filhos. Todos sorridentes. Mesmo por cima da foto lia-se: “Juntos pela família”.

Olhou para a foto e sorriu, contente por fazer a sua parte na preservação de tão nobre instituição.

Quando já ia na porta, uma mulher mexeu-se na cama e perguntou: “Então, meu gigante, como é, não me pagas hoje de novo?”, Manuel sorriu e respondeu: “Já me conheces, sabes que sou de confiança. Semana que vem pago tudo. Põe na conta”.
 

terça-feira, 10 de março de 2015

Concessões



Posso seguir os teus passos
Fazer toda a viagem contigo
Ser a tua fortaleza, teu escudo
Dar-te colo, carinho e abrigo

Posso enxugar as tuas lágrimas
Com sorte, impedi-las de cair
Mostrar-te a beleza da estrada,
A esperança no que há de vir

Contra os teus demônios, nada posso
Se não me permites conhecer
O que os encoraja e alimenta
As concessões que os fazem viver

Mateus Medina
10/03/2015

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Apenas um vislumbre do Poeta

Ser poeta é tentar o impossível
Insistir no erro crasso de crer
Persistir na tradução do indizível
De tristeza, todo dia morrer

Ser amado e amar de outro jeito
Incompreender e ser incompreendido
Alcançar o mais alto dos feitos
P'ra depois desmontar os abrigos

É não temer a escuridão insondável
Que o grande mistério encerra
Passar pelo inverno intolerável
E conta-lo feito primavera

Ser poeta é prescindir da certeza
E aceitar a mais sublime ignorância
Encontrar a salvação na beleza
Ser velho sem deixar de ser criança

Mateus Medina
24/02/2015

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

A saudade é uma moeda



Há na saudade tristeza e dor,
O cinzento desespero da ausência,
O egoísmo intolerante e burro
Há na saudade inútil insistência

Que havemos de fazer com o vazio?
Como encontrar explicação?
A saudade não responde a nada
Das respostas só cria ilusão

Há entretanto um outro lado,
Posto que a saudade é moeda
Atira-se ao ar e não se escolhe
Em qual das faces se queda

Há nela também o sorriso
A lembrança infindável do amor
Há na saudade uma brisa qualquer
Que alivia a insuportável dor

A saudade é o paradoxo final
Da lembrança que torna presente
Quem já não podemos tocar

Há na saudade a essência imortal
Daqueles que embora ausentes
Jamais deixaremos de amar

Mateus Medina
06/02/2014












quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Preguiça



Hoje acordei com a chuva
E a fresta da janela me dizia
Lá fora o mundo não é p'ra mim
Deixei-me estar na cama vazia

Sem conseguir me levantar
Rolei, voltei a adormecer
Tentei por tudo voltar a sonhar
Aquele sonho que não realizei

Deixa estar, lá fora está feio
E se é preciso levantar
Fica hoje o sonho pelo meio
Amanhã há de se realizar

Mateus Medina
30/10/2014

terça-feira, 25 de novembro de 2014

O paradoxo da obra-prima

 Dora Maar au Chat (Pablo Pacasso)


 Quero imortalizar-te nos meus versos,
Petulante poeta que me digo
Em verdade, apenas réu confesso
Culpado do desejo mais antigo

Finjo, sem que a culpa me atormente
Traduzir tua beleza em pobres rimas
Num ato de egoísmo inconsequente
O poeta persegue a obra-prima

 Rendo-me a impossibilidade
De espelhar em parvos poemas
O que és por inteiro; a verdade
Ante a beleza, a letra é pequena

Mateus Medina
24/11/2014

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Não há vida sem poesia

 

A poesia é maior do que a vida,
Maior que tu e eu, minha querida
Porque a vida um dia acaba, acredite
Mas esse mundo sem poesia, não se admite

Deixe que a vida se esvaia - quando for a hora
Ninguém pode deter a mão que esmaga
A inconfundível luz do sol na aurora
Ninguém impede que a poesia traga

Enquanto a vida durar que se semeie
Todo riso, todo amor, toda magia
Porque a vida está sempre por um triz
E quando acaba vira poesia

Mateus Medina
12/11/2014





terça-feira, 4 de novembro de 2014

Lutar pela curiosidade



Tens que lutar, meu amigo. Lutar.
Há um monstro em cada esquina, eu sei
Tens pouco com o que te defender?
É o que há,
Ser criativo.
Lutar.

Diariamente, meu amigo, é assim
É violento e injusto? Não sei.
Tudo o que sei é que a estrada
Não te leva onde queres chegar
A estrada é um meio, mais nada
Tens que lutar, meu amigo
Correr

O que é que há no fim do caminho?
Ora, fazes tão boa pergunta
A resposta desconheço, amigo
O que sei é que se não deres luta
O que hoje sabes é tudo que saberás
Tens que lutar, meu amigo. Lutar.
Apenas por curiosidade. 

Mateus Medina
30/10/2014